domingo, 6 de setembro de 2015

Livro Recomendado da Semana - 13 a 19/09/2015

UMA TRAGÉDIA AMERICANA - THEODORE DREISER

O LIVRO / COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO

Um dos valores da obra de Theodore Dreiser, escritor estadunidense de início do século XX é ter como objeto de suas histórias a classe trabalhadora. Por Ronan
Talvez demore muito tempo para que uma pessoa consiga perceber o quanto os populares são excluídos das pinturas, novelas e romances. No Brasil, o hábito é que uma população empobrecida se acostume embasbacar com um cotidiano de elite apresentado pela televisão. Ao contrário, tal como em romances de Victor Hugo, Leon Tolstoi, John Steinkbeck, Émile Zola, Fiódor Dostoiévski, tem-se presente, em Theodore Dreiser, o universo popular.
Uma Tragédia Americana é um livro extenso que compensa o esforço. Publicado por Dreiser no ano de 1925, a obra narra a odisseia de um jovem pobre em busca da ascensão social. O livro parece mesmo a biografia de qualquer um dos milhões de jovens que se pode encontrar em qualquer cidade grande: Clyde, o herói da história, passa pela origem humilde, o encantamento com o mundo do consumo, as variadas formas de tentar negar a condição de pobre e trabalhador, o conflito entre os valores familiares e a cultura juvenil, entre o compromisso com o orçamento familiar e o luxo possível, o abandono de preceitos morais e do caráter pelo sucesso a qualquer preço. O livro sintetiza bem a filosofia do mundo contemporâneo: vencer na vida, quando isso é sinônimo de dinheiro, fama, glamour. Vencer na vida, independente do preço moral da vitória. Com efeito, Clyde se dispõe a abandonar irmãos e pais, depois uma namorada grávida e até mesmo assassiná-la na busca do sucesso.
O romance também faz um retrato exato das relações de afinidade e parentesco que a elite tece para se manter coesa e no poder, das práticas culturais e dos símbolos utilizados para se distinguir dos populares, do profundo desprezo com que enxerga os pobres e do cinismo (insensibilidade) com que encara a condição dos trabalhadores. Da mesma forma, mostra como e elite joga por terra qualquer condicionamento moral quando se trata de livrar um dos seus e manter o status.
De uma perspectiva anticapitalista, Uma Tragédia Americana é ainda envolvente porque narra o abandono dos valores de classe por um jovem proletário que acaba por ferrar-se no encantado mundo de consumo e glamour da elite: hipnotizado por ela, é trucidado em suas mãos. Em vários momentos da história, Clyde tem a oportunidade de constatar o desprezo e a condição subalterna a que é voltado, mas permanece em seu encalço até o desfecho. Ele prefere arriscar tudo, até mesmo a vida, a permanecer como trabalhador. Nesse aspecto, a história de Clyde se assemelha a de tantos jovens pobres que preferem o crime, tragédia certa, a quatro ou cinco horas de condução diária, trabalho estafante e salário baixo, pouco valor social.
A tragédia mostra a adoção pelos explorados da perspectiva dos exploradores e a violência em que isso se processa. De início, Clyde é somente um jovem pobre, filho de protestantes fanáticos que, junto com os filhos, vão cantar e pregar no centro da cidade. É um jovem feliz e bem encaminhado moralmente, sem dúvidas quanto ao destino da vida. Aos poucos ele vai se dando conta de como ele e sua família, por pregarem na rua, por estarem alheios aos consumismo, são ridicularizados pelos demais jovens, que caçoam de suas roupas, de seu corte de cabelo, de seu jeito de ser. Percebe como são vistos os pobres e as pessoas sem vaidade e sem ambições. De como os que não têm dinheiro são tratados como pessoas de segunda ou terceira: sua adesão aos valores urbanos e consumistas é desencadeada pela vontade de ser tratado decentemente. Eis que, na mais miserável das periferias, jovens que consigam ter um Nike no pé ridicularizam e humilham aqueles que não o possuem.
A história serve para ilustrar como que ao exploradores não basta explorar, é necessário segregar e humilhar. Não bastasse a pobreza decorrente da desigualdade social, se procura fazer do pobre um ser de humanidade inferior. Não bastasse os trabalhadores sustentarem com seu suor a riqueza e luxo dos poderosos, eles pretendem, ainda, colocarem-se como moralmente superiores, mais belos, inteligentes, esforçados, puros. Ao mesmo tempo, procuram individualizar os problemas sociais, fazendo com que o pobre se culpe por sua condição e, introjetando os valores do mundo que lhe é negado, se veja como um sujeito menor. Uma Tragédia Americana é um livro e tanto. Trata-se de um romance que vai fundo na análise social e na crítica aos valores dominantes ao enfatizar a miséria moral do mundo do sucesso a qualquer preço.
Fonte: www.passapalavra.info/2009/02/850

O AUTOR

Theodore Herman Albert Dreiser (Terre Haute, Indiana, 27 de Agosto de 1871 - 28 de Dezembro de 1945) foi um escritor e ativista político norte-americano. Sucedeu Franck Norris como o escritor mais representativo do naturalismo nos Estados Unidos.
Seu pai era um imigrante alemão católico, enquanto a mãe pertencia a uma comunidade menonita de agricultores estabelecidos em Dayton, Ohio, tendo sido repudiada após seu casamento e conversão ao catolicismo. Theodore era o 12º de 13 filhos - nodo de dez sobreviventes.
de 1889 a 1890, Theodore frequentou a Universidade de Indiana, antes de ser reprovado. Por vários anos, escreveu para o jornal Chicago Globe e depois para o St. Louis Globe-Democrat.
O seu primeiro romance, Sister Carrie (1900), conta a história de uma mulher que troca a vida do campo por uma vida fútil na cidade de Chicaco, Illinois. O segundo romance, Jennie Gerhardt, foi publicado no ano seguinte. Grande parte da obra subsequente de Dreiser trata de injustiças sociais.
Seu primeiro sucesso comercial, Uma Tragédia Americana (1925), é a história de um jovem de caráter instável surpreendido por acontecimentos que o levam à execução por assassinato. O romance deu origem a um filme em 1931 e novamente em 1951

Dreiser não é tão apreciado por seu estilo mas sobretudo pelo realismo de seu trabalho, pela construção dos personagens e por seus pontos de vista sobre o estilo de vida americano. Teve grande influência sobre a geração de escritores americanos que se seguiu à sua.
Politicamente, Dreiser envolveu-se com várias campanhas contra a injustiça social, incluindo o linchamento do sindicalista Frank Little, um dos líderes na Industrial Workers of the World, o caso Sacco and Vanzetti, a deportação de Emma Goldman e a condenação do líder sindical Thomas Mooney.
Em 1935 a Associação das Bibliotecas de Warsaw, Indiana, ordenou a queima de todos os trabalhos de Dreiser existente nos acervos.
Theodore Dreiser, um militante socialista, ou antes, comunista, escreveu vários livros de não-ficção sobre questões políticas, dentre os quais Dreiser Looks at Russia (1928), sobre sua viagem à União Soviética, em 1927; Tragic America (1931) e America is Worth Saving (19141). Elogiou a União Soviética sob Stálin durante o Grande Terror e a aliança com Hitler.
Filiou-se ao Partido Comunista Americano em agosto de 1945. Em dezembro, faleceu em Hollywood, de ataque cardíaco, aos 74 anos. Encontra-se sepultado no Forest Lawn Memorial Park, Glendale, Los Angeles, nos Estados Unidos.

sábado, 29 de agosto de 2015

Livro Recomendado da Semana - 30/08 a 05/09/2015

PANTALEÃO E AS VISITADORAS - MARIO VARGAS LLOSA

O LIVRO

Pantaleão Pantoja tem um senso de disciplina tão profundo que é encarregado pelo Exército peruano de organizar um bordel itinerante. Sua missão é reduzir as taxas e estupro nas zonas militarizadas, oferecendo prostitutas aos soldados. Em cartas enviadas a seus superiores, ele relata o seu sucesso e os testes que faz pessoalmente com a visitadoras. Tudo vai bem até ele se apaixonar pela mais bela das prostitutas.
O jovem capitão Pantaleão Pantoja foi treinado para ser um dos mais eficientes oficiais do Exército peruano. Disciplinado, respeitador das hierarquias, estava preparado para enfrentar qualquer tipo de missão militar.
mas a tarefa que lhe foi designada superava todas as expectativas de um sério oficial de carreira: organizar um bordel na selva amazônica e amenizar a forma sexual da soldadesca que, no isolamento da mata, passara a violentar as mulheres locais, pondo em risco a reputação das Forças Armadas nacionais.
Embora tivesse sempre aspirado a ser um herói de guerra, e não um cafetão das florestas, Pantoja aplica meticulosamente seus conhecimentos de estratégia e de logística na implantação do "serviço de visitadoras" - codinome para o lupanar equatorial. O problema é que nem a disciplina mais férrea foi capaz de evitar um envolvimento amoroso do capitão, perfeito pai de família, com a menina mais bela do "regimento".
Neste romance, Mario Vargas Llosa exibe mais uma vez a sua fantástica capacidade de contar histórias que têm ao mesmo tempo um pé bem plantado na realidade, e outro, no delírio.
No caso, o leitor pode se recordar das investidas bélicas de um Peru em guerra contra o Equador, aqui solapadas por uma comédia erótica que desmonta qualquer pretensão de heroísmo.

O AUTOR

Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu em Arequipa (Peru), em 1936, e passou a infância na Bolívia. De volta ao Peru, estuda Direito e Letras.
Em 1959 vai para Madri, onde faz doutorado em Filosofia e Letras. Muda-se para Paris, como redator da France Presse. Seu primeiro livro, Os Chefes, é de 1959. Obtém sucesso internacional com o romance Batismo de Fogo (1962), traduzido para várias línguas.
Em 1964, regressa ao Peru e realiza sua segunda viagem à selva amazônica. Trabalha como tradutor para a Unesco, na Grécia. Pantaleão e as Visitadoras sai em 1973. Pelos próximos anos, reside em Paris, Londres e Barcelona.
Em 1981, publica A Guerra do Fim do Mundo, no qual narra a história da Guerra de Canudos. Volta ao Peru em 1983; sete anos depois concorre às eleições presidenciais (chegando ao segundo turno). Em seguida, muda-se para Londres, onde vive até hoje. Entre seus muitos títulos de ficção, jornalismo e ensaio, cabe mencionar os mais recentes: A Linguagem da Paixão (2002), Paraíso na Outra Esquina (2003), Travessuras da Menina Má (2006), O Sonho do Celta (2010) e O Herói Discreto (2013).
Em 7 de Outubro de 2010 foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura pela Academia Sueca de Ciências "por sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens vigorosas sobre a resistência, revolta e derrota individual". O então presidente do Peru, Alan García, considerou o prêmio a Llosa como "um reconhecimento a um peruano universal".

COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO

Por Cassiano Elek Machado da Folha de São Paulo

Pantaleão e as Visitadoras é um livro safado. E não apenas pelas safadezas de seu ardido enredo. Militar exemplar, estilo Ordem e Progresso, o capitão Pantelão Pantoja, recebe uma missão de importância capital para sua pátria: montar um serviço de "visitadoras" para os soldados que, isolados em guarnições perdidas na transpirante Amazônia peruana, vinham se transformando em estupradores em série.
Na organização desse delivey de moças de fino trato, Pantita topa com ossos duros de roer: a igreja tacanha, a imprensa sensacionalista, uma burocracia de fazer corar Kafka e, desafio maior, uma morena apelidada de Brasileira.
Romance com o qual Vargas Llosa, em suas próprias palavras, "descobriu o humor", Pantaleón finta todas essa coleção de arcaísmos latino-americanos com a leveza de um passarinho. Com um texto ágil, mas que incorpora recursos narrativos sofisticados, o escritor peruano consegue neste livro publicado há quarenta e dois anos algo semelhante aos dribles de Mané Garrincha.
É divertido, mas contundente; parece simples, mas tem grande engenho; deixa qualquer leitor estatelado no chão. Romance de pernas tortas, Pantaleão e as Visitadoras é definitivamente um livro safado.

sábado, 22 de agosto de 2015

Livro Recomendado da Semana - 23 a 29/08/2015

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS - GEORGE ORWELL

O LIVRO
O sonho de um velho porco e criar uma granja governada por animais, sem a exploração dos homens concretiza-se com uma revolução. Como acontecem com as revoluções, a dos bichos também está fadada à tirania, com a ascensão de uma nova casta ao poder. Nesta fábula feita sob medida para a Revolução Russa, todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.
Num belo dia, os animais da fazenda do sr. Jones se dão conta da vida indigna a que são submetidos: eles se matam de trabalhar para os homens, lhes dão todas as suas energias em troca de uma ração miserável, para ao final serem abatidos sem piedade. Liderados por um grupo de porcos, os bichos então expulsam o fazendeiro de sua propriedade e pretendem fazer dela um Estado em que todos serão iguais.
Logo começam as disputas internas, as perseguições e as exploração do bicho pelo bicho, que farão da fazenda um arremedo grotesco da sociedade humana.
Publicada em 1945, A Revolução dos Bichos foi imediatamente interpretada como uma fábula satírica sobre os descaminhos da Revolução Russa, chegando a ter sido utilizada pela propaganda  anticomunista. A novela de George Orwell de fato fazia uma dura crítica ao totalitarismo soviético; mas seu sentido transcende amplamente o contexto do regime stalinista.
Mais do que nunca esta pequena obra-prima da ficção inglesa parece falar aos nossos dias, quando a concentração de poder e de riquezas, a manipulação da informação e as desigualdades sociais parecem atingir um ápice histórico.

O AUTOR
George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, nasceu em 1903, em Bengala (Índia), filho de um funcionário britânico e uma francesa. Muda-se para a Inglaterra em 1911, e vai para um internato. De 1917 a a921, estuda no Eton College, uma das mais tradicionais escolas inglesas, onde tem aulas com o escritor Aldous Huxley. Em 1922, recusa uma bolsa para a universidade e volta à Índia para trabalhar na polícia imperial.
Retorna à Inglaterra em 1928. Vivendo na pobreza - chega mesmo à mendicância -, vaga por Londres e Paris até meados de 1930. Em 1933, publica seu primeiro livro, Na Pior em Paris e Londres.
Socialista, vai para a Espanha, em 1936, lugar na Brigada Internacional em apoio ao recém-eleito governo popular. Lutando na Espanha (1938) narra suas experiências na Guerra Civil Espanhola.
Durante a Segunda Guerra Mundial Orwell trabalha como correspondente de guerra para a BBC. Em 1945, publica A Revolução dos Bichos, até hoje sua obra mais popular. Outro livro conhecido em todas as línguas é o seu romance 1984 (1949), uma sátira pessimista sobre a ameaça de tirania política no futuro.
George Orwell morreu em 1950, na Inglaterra, em consequência de uma tuberculose. Entre outras obras, escreveu também Dias na Birmânia (1934), O Caminho de Wigan (1937) e Por que Escrevo (1946).

COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO

Por Fernando de Barros e Silva - Editor da Folha de São Paulo

George Orwell publicou A Revolução dos Bichos, numa época em que, por conivência ou desconhecimento parcial de suas atrocidades, o comunismo soviético ainda gozava de enorme prestígio nos meios progressistas. Impulsionado pela atmosfera de "Guerra Fria" - expressão, aliás, atribuída a Orwell -, o livro fez sucesso instantâneo. Ninguém, depois dele, teria o direito de ainda ser inocente.
Poucas obras seriam tão instrumentalizadas à revelia de seu autor. Crítico precoce do stalinismo, Orwell sempre se definia como um socialista de convicções profundamente democráticas.
Os Estados Unidos transformaram o seu livro numa peça de propaganda do anticomunismo e a CIA chegou a providenciar uma versão em desenho animado, distribuída no mundo inteiro, com a cena final adulterada. Morto em 1950, aos 46 anos, Orwell provavelmente teria morrido uma segunda vez, de desgosto, ao ver sua obra desvirtuada pelas engrenagens do macarthismo.
O comunismo, pelo menos na forma que o conhecemos, pertence hoje ao cemitério da história. A Revolução dos Bichos, porém, sobreviveu à experiência que o tornou possível.
A fábula dos animais que se rebelam contra o tirano que os explorava e, em nome de ideais igualitários, constroem uma sociedade ainda mais opressiva, preserva seu interesse e para em pé mesmo sem referência imediata à história.
A linguagem quase simplória e as alegorias transparentes fazem do livro uma delícia para crianças. Mas não só. Sua máxima moral, de que "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros", talvez traduza, para o bem e para o mal, uma das poucas verdades ancestrais acerca da dominação, da Idade do Bronze aos dias que correm.

sábado, 15 de agosto de 2015

Livro Recomendado da Semana - 16 a 22/08/2015

ANGÚSTIA - GRACILIANO RAMOS

O LIVRO

Romance em que Luís da Silva, funcionário público e escritor frustrado, confessa de forma desesperada um homicídio. A vítima, Julião Tavares, havia conquistado a mulher que Luís amava. A construção caótica do texto reflete o estado mental de um sujeito feio que se apaixonara por uma jovem de cabelos de milho, unhas pintadas, beiços vermelhos e o pernão aparecendo. Aqui, o humilhado se vinga com palavras.

Luís da Silva tem 35 anos, é funcionário, escreve eventualmente para os jornais e leve uma existência que se poderia considerar, em todos os aspectos, ordinária. No entanto, o seu mundo interior, cheio de "estranhos hiatos", está longe de ser banal. Narrador de sua própria história, Luís da Silva vive ruminando frustrações intelectuais, memórias da infância, o desejo incontrolável pela vizinha Marina e o ódio pelo bem-sucedido Julião Tavares, que lhe rouba a pretendente.
Escrito num andamento de pesadelo, mas com a concretude do pequeno detalhe cotidiano que é a marca do estilo de Graciliano Ramos (1892-1953), Angústia faz uma lenta imersão na consciência desse personagem complexo e atormentado, que afunda no inferno do ciúme e do ressentimento até o ponto de cometer um ato extremo.
Como bem observou o crítico Otto Maria Carpeaux, "todos os romances de Graciliano Ramos são tentativas de destruição" - e este não foge à regra. "Não sou um rato, não quero ser um rato", repete para si o protagonista.
Lançado em 1836, quando o autor estava preso pelo governo de Getúlio Vargas, o livro ganhou o prêmio "Lima Barreto" da Revista Acadêmica e contribuiu para fazer de Mestre Graça (como era conhecido pelos amigos) um dos maiores escritores da Literatura Brasileira.

O AUTOR

Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo (AL), em 1892. Um dos 15 filhos de uma família de classe média do sertão nordestino, passou parte da infância em Buíque (PE) e outra em Viçosa (AL). Fez estudos secundários em Maceió, mas não cursou faculdade. Em 1910, sua família se estabelece em Palmeira dos Índios (AL).
Em 1914, após breve estada no Rio de Janeiro, trabalhando como revisor, retorna à cidade natal, depois da morte de três irmãos, vitimados pela peste bubônica. Passa a fazer jornalismo e política em Palmeira dos Índios, chegando a ser prefeito da cidade (1928-1930).
Em 1925, escreve seu primeiro romance, Caetés. Muda-se para Maceió em 1930, e dirige a Imprensa e Instrução do Estado. Logo viriam São Bernardo (1934) e Angútia (1936, ano em que foi preso pelo regime Vargas, sob a acusação de subversão).
Memórias do Cárcere (1953) é um contundente relato da experiência na prisão. Após ser solto, em 1937, Graciliano Ramos transfere-se para o Rio de Janeiro, onde continua a publicar não só romances, mas contos e livros infantis. Vidas Secas é de 1938.
Em 1945, ingressa no Partido Comunista Brasileiro. Sua viagem para a Rússia e outros países do bloco socialista é relatada em Viagem, publicado em 1953, ano de sua morte.

COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO

Por YUDITH ROSENBAUM
Colaboradora da Folha é professora de literatura brasileira na USP

Quando Angústia foi publicado, em 1936, a maior parte da crítica não foi capaz de perceber o inusitado da obra. O texto provocava estranhamento no leitor e não se amoldava à objetividade da literatura regionalista da época. O próprio Graciliano Ramos julgava seu romance "desagradável", um "solilóquio doido", "enervante" e "mal escrito".
A linguagem é breve, sintética e concisa, marca inconfundível do autor. O amor possessivo do funcionário público decadente Luís da Silva pela vizinha Marina, ao lado da rivalidade doentia com Julião Tavares (em tudo mais potente e superior que seu agressor), montam uma trama que entrelaça o psicológico e o social. O leitor acompanha, em compasso de crescente tensão, a experiência delirante de um criminoso e o processo minucioso da gênese desse crime. Na prisão, movido pela necessidade de confessar, o narrador se empenha na escritura de um livro e através dele procede a uma autoanálise. 
Passados 79 anos da recepção inicial, Angústia se afirma como um marco da Literatura Brasileira e na trajetória do autor. Seria mesmo difícil, nos anos 30, legitimar essa escrita compulsiva, dominada pelo fluxo interno de pensamentos, lembranças e afetos do narrador-protagonista Luís da Silva. O resultado é uma narrativa imersa em clima de sonho, ou melhor, de pesadelo, banhada por alucinações, vivências sexuais reprimidas e desejos sádicos obsessivos.
O mundo relatado em Angústia é estreito e sufocante, mas o alcance literário da obra se expande, ainda hoje, para além dos limites da crítica.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Homenagem a Éfrem Galvão (1935-2015)

O AUTOR
Foto: Arquivo TV Tapajós

Nome completo: Éfrem de Jesus Neves Galvão; 
Pai: Antônio de Castro Galvão (conhecido como Pepeu); 
Mãe: Maria Neves Galvão; 
Data de Nascimento: 27 de Fevereiro de 1935. 
Local de Nascimento: Santarém-Pará, precisamente na Rua dos Artistas. 
Era casado com Ana Maria Bezerra Galvão, com quem teve 10 filhos, hoje apenas 8 Jordan, Sandra, Júlia, Sérgio, Juarez, Josué, Jáder e Ana Paula. Além desses, teve ainda dois filhos Antonio e Manuel Raimundo. 
Estudou na Escola Frei Ambrósio durante 5 anos, passando para o Ginásio Dom Amando (4 anos). Fez somente provas do Supletivo 2º Grau. Cursou Bacharelado em Ciências Sociais na UFPa. 
Criou o primeiro secador de madeiras por radiação solar da América Latina (em Santarém). Autor das seguintes publicações técnicas: "Secagem de Madeira por Radiação Solar" e "Classificação de Madeiras Serradas de Folhosas". 
Coordenou uma coletânea de Contos chamada "Mosaico Amazônico" em 2001. Era Membro da ALAS - Academia de Letras e Artes de Santarém.

OBRAS PUBLICADAS
O Jacaré e os Milagres (1979); 
A Cobra Grande e os Pescados (1982); 
A Canguçu e o Eldorado (1985); 

Romanceiro Mocorongo ou a Quase História de Santarém (1998); 

 Amazônia: Lenda e Romance (2001) - publicação que reuniu as três primeiras obras; 

A Descendência de Maria Chibé (2002); 

Vagas Lembranças de Quase Nada (2003); 

Foi Assim (2005); 

Velho Caduco e Onça Corrupta (2007)
AUTÓGRAFOS DE ÉFREM GALVÃO




PARTICULARIDADES DE ÉFREM GALVÃO
Sempre teve muita habilidade com cálculos. tinha uma leitura muito rápida. Gostava de ler, escrever, pescar, tecer malhadeiras e tarrafas; gostava de ir ao Bar Mascote com a "Donana" nas sextas, jogar baralho com o computador, assistir a documentários, filmes e noticiários, comer "docinhos" - os famosos "engasga-gato", gostava muito da combinação peixe, limão, pimenta e farinha, gostava de bolo simples e pudim de leite e achava a Camila Pitanga um "piteuzinho".

RECONHECIMENTO
Diploma de Licenciatura em Conversão Primária de Madeira fornecido pelo Ministério da Agricultura - pelos diversos cursos que fez e administrou e também por ter participado da comissão que definiu normas para a classificação de madeiras
Ganhou a Medalha João Felipe Bettendorf, que é a homanagem prestada pelo município de Santarém a quem se destaca por serviços prestados à sociedade. 
Recebeu ainda o Diploma de Honra ao Mérito do Círculo Literário do Oeste do Pará, quando de sua fundação em 2005. Era membro da Academia de Letras e Artes de Santarém. Finalmente, Éfrem Galvão foi um homem de cultura completo.

E aqui externo minha singela homenagem a um homem que sempre foi reconhecido por mim, no Colégio Dom Amando ou Júlia Passarinho onde trabalho. Era uma honra falar pessoalmente com seu Éfrem Galvão, às vezes, em frente à sua casa quando, todas as tardinhas, ficava sentado em sua cadeira de balanço, junto com sua esposa e filhos, e nunca se cansava de dar uma palavra amiga de incentivo para quem ia visitá-lo. Descanse em paz, grande amigo!!!

  

sábado, 8 de agosto de 2015

Livro Recomendado da Semana - 09 a 15/08/2015

A CONSCIÊNCIA DE ZENO - ITALO SVEVO

O LIVRO
O italiano Ettore Schmitz usou o pseudônimo de Svevo para escrever um dos primeiros romances que faz uso da técnica psicanalítica, lançado em 1923. Nele, um rico comerciante de Triste, conta a seu psicanalista a sua vida; a paixão por uma jovem e o casamento com a irmã dela, as tentativas frustradas de parar de fumar, os sucessos e fracassos comerciais, tudo narrado num tempo lento.
Já no fim de sua vida, Zeno Cosini, um bem sucedido empresário de Triste (norte da Itália), decide fazer um balanço de suas experiências no divã de um analista.
Ali, deitado no estreito sofá, ele começa a se dar conta de que toda a sua história, passada e presente, compõe-se de pequenos fracassos: o casamento com uma mulher que ele não escolheu, o trabalho que não lhe agradava, as tentativas falhadas de parar de fumar ou de simplesmente mudar de rumo, ter outro destino. A lenta escavação dos fatos e das impressões pela memória é então submetida à visão implacável, irônica e, às vezes, hilariante de Zeno - que assim, de certa forma, consegue libertar-se da "doença", mas não de suas neuroses.
Imediatamente aclamada por autores do porte do romancista James Joyce e do poeta Eugenio Montale, esta obra-prima de Italo Svevo (1861-1928) põe do avesso as distinções entre sanidade e loucura, sucesso e derrota, ao mesmo tempo em que expõe ao ridículo os valores da moral burguesa. Valendo-se de recursos próprios da psicanálise, como a livre associação de ideias, o romance faz ainda uma sátira da ciência criada por Sigmund Freud - de quem Svevo, aliás, foi tradutor.
É assim que Zeno chega à conclusão de que sua vida, afinal, "foi mais bela do que a dos assim chamados sãos". Italo Svevo morreu cinco anos depois de alcançar a consagração literária com este romance.

O AUTOR
Italo Svevo, pseudônimo de Ettore Schmitz, nasceu em 1861, em Triste (cidade italiana que, à época, pertencia ao Império Austro-Húngaro). Em 1880, devido a dificuldades financeiras, abandona os estudos para trabalhar em um banco. Seus dois primeiros romances - Uma Vida (1892) e Senilidade (1898) - passam despercebidos do público e da crítica.
Em 1907 começa a ter aulas de inglês com o escritor James Joyce, de quem fica amigo. Em 1915, a guerra força Svevo à ociosidade e ele volta à literatura. A descoberta de Freud tem profundo efeito sobre ele - e sobre sua ficção.
Grande admirador de seus dois primeiros romances, James Joyce encoraja Svevo a escrever. Em 1923, ele publica A Consciência de Zeno, outro livro que sai sem maior repercussão - até Joyce passar o romance a dois críticos franceses (Valéry Larbaud e Benjamin Cremieux), que promovem sua publicação na França e tornam Svevo famoso.
Ele trabalhava na continuação de seu maior romance quando, em 1928, sofreu um fatal acidente de carro em Motta di Livenza (Itália).
Além dos livros já citados, Svevo é o autor de Uma Farsa Bem-sucedida (1928) e de um volume de contos, publicado postumamente, A Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha (1930).

COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO
Por Bernardo Ajzenberg (Ombudsman da Folha de São Paulo)

Em seu relato autobiográfico, criado originalmente como instrumento de apoio a um tratamento psicanalítico, o burguês e bon vivant quase sessentão Zeno Cosini, de Triste, exibe todas as suas fragilidades, falcatruas e desvios, dos menores aos maiores, em ações, omissões e sentimentos.
Vício do fumo, infidelidade conjugal permanente, ciúme doentio, inveja, hipocrisia, fingimento, cinismo, imposturas, medo da velhice, fúria, indiferença para com a família... A lista de "pecados" de Zeno é extensa - como são ilimitados os sonhos e as fantasias que a alimentam.
Mas também é grande o sofrimento que emana dessa espécie de diário, ante as agruras de uma vida dupla, do ócio improdutivo, da orfandade relativamente precoce, da doença e da dor, da morte, do amor não correspondido. De um desejo de felicidade cuja satisfação se mostra, ao final, inatingível.
Lançado na Itália pouco depois da Primeira Guerra Mundial, em 1923, A Consciência de Zeno forma, na literatura universal, um dos mais valorosos painéis, nos quais se mesclam à vida cotidiana questões de amplo alcance cultural, científico e filosófico. Com destaque, aqui, para a "nova" psicanálise.
O romance de Italo Svevo, não por acaso, é um daqueles nos quais o protagonista mais se desnuda. Ele expõe, a um tempo, com ironia e detalhes surpreendentes de tão ínfimos, não apenas o desencontro público e privado de um indivíduo sem eixo, mas também a decadência da classe e do período histórico que ele, sem saber, representa.

sábado, 25 de julho de 2015

Livro Recomendado da Semana - 02 a 08/08/2015

O MESTRE E MARGARIDA - MIKHAIL BULGÁKOV

O LIVRO


O Mestre e Margarida tem muitas tramas. Na trama central a Moscou de 1929 é visitada pelo diabo, com o nome de Woland. Em seu séquito estão Koroviev ou Fagote (como o instrumento musical), o enorme gato Birguemot ou Behemot, que em russo significa tanto a criatura bíblica (Jó 40: 15-24) quanto hipopótamo, Azazello, Abadon e a bruxa Hella.
Bulgákov começou a escrever o romance em 1928. O primeiro manuscrito foi destruído em março de 1930 pelo autor, que o queimou em um forno, quando soube que outro livro seu, de conteúdo cabalístico havia sido banido. O trabalho foi recomeçado em 1931 e em 1935 Bulgákov foi a um Festival de Primavera que teria inspirado o baile do livro. A segunda versão foi terminada em 1936 e nesse ponto todas as tramas do romance já existiam. O terceiro rascunho foi terminado em 1937. O escritor parou de trabalhar na quarta versão em 1940, quatro semanas antes de sua morte. O trabalho foi completado por sua esposa em 1940-41.
Uma versão censurada (12% do texto fora eliminado e muitas outras partes foram modificadas) foi publicada na revista Moscou (nº 11, 1966 e nº 12, 1967). A versão integral foi distribuída em cópias clandestinas, publicada em Samizdat. A primeira versão integral foi publicada em Frankfurt, em 1973, pela Editora Posev.
A primeira versão integral foi publicada na Rússia pela revista Khudojestvyennaya Lityeratura em 1973. Ela era baseada numa versão de 1940. Em 1989, a especialista Lidiya Yanovskaya compôs uma nova versão oficial, com base em manuscritos do autor.
Algumas das tramas do livro já haviam aparecido em contos de Bulgákov. O Museu Bulgákov, em Moscou foi vandalizado em 22 de dezembro de 2006, por fanáticos religiosos que alegavam ser O Mestre e Margarida um romance satanista.

O AUTOR

Mikhail Bulgákov nasceu em Kiev, no Império Russo. Primogênito de um professor de seminário. Os irmãos Bulgákov alistaram-se no Exército Branco e, ao final da Guerra Civil, acabaram em Paris, à exceção de Mikhail que, tendo se alistado como médico de campanha, serviu durante a Guerra no Cáucaso, onde começou a trabalhar também como jornalista. Apesar de seu status relativamente favorável sob o regime de Stálin, Bulgákov não pôde emigrar ou visitar seus irmãos na Europa. Alguns detalhes de sua biografia não são claros, pois ele sempre foi muito discreto sobre sua vida pessoal.
Em 1913, Bulgákov casa-se com Tatiana Lappa. No início da Primeira Guerra, alista-se como volutário da Cruz Vermelha. Em 1916, forma-se em Medicina pela Universidade de Kiev e serve no Exército Branco. É mobilizado por pouco tempo pelo Exército Nacionalista Ucraniano. Em 1919 decide abandonar a Medicina para tentar carreira na Literatura. Em 1921, muda-se com Tatiana para Moscou onde inicia de fato seu trabalho como escritor. Três anos depois, divorciado de sua primeira mulher, casa-se com Lhubov Beloziorskaia. Publica vários trabalhos durante a década de 1920, mas, por volta de 1927, começa a sofrer acusações de comportamento antissoviético. Em 1929 sua carreira está destruída e seus trabalhos censurados.
Em 1932 casa-se pela terceira vez, com Yelena Chilóvskaia que é a inspiração para opersonagem Margarida em seu romance mais famoso e instala-se com ela perto de Patriárchi Prudy (Lado do Patriarca). Durante a última década de sua vida, Bulgákov continua os trabalho em O Mestre e Margarida, escreve peças, críticas, contos e várias traduções e adaptações para o teatro de romances, sem publicação.
Bulgákov nunca apoiou o regime e o ridicularizou em vários de seus trabalhos. Por essa razão muitos deles ficaram inéditos por décadas. Em 1930 escreve uma carta para Stálin pedindo permissão para emigrar, já que a União Soviética não tem trabalho para ele satirista e recebe uma ligação do próprio Stálin negando seu pedido.
Stálin gostara da peça Os Turbins ("Dni Turbinykh) e empregou-a em um pequeno teatro de Moscou. Mais tarde, a peça foi transferida para o Teatro de Arte de Moscou. Em sua autobiografia e em muitas biografias diz-se que ele escreveu a carta em desespero, sem intenção de enviá-la. A recusa das autoridades de empregá-lo no teatro e permitir sua visita aos familiares vivendo no exterior levaram-no a tomar medidas drásticas. Apesar de seu trabalho, os projetos que realizou para o teatro não alcançaram maior sucesso. Também atuara por algum tempo com o Teatro Bolshoi como roteirista, mas demitiu-se depois de seus roteiros não terem sido produzidos.
Morreu em março de 1940 de uma doença hereditária dos rins e foi enterrado no cemitério Novodevitchi em Moscou.
Sua obra mais famosa, o monumental romance O Mestre e Margarida, levou mais de doze anos, entre 1928 e 1940 para ser concluído. Em 1939, já cego, foi auxiliado na tarefa por sua mulher Yelena, a quem ditava os capítulos finais. O Mestre e Margarida foi publicado pela primeira vez em 1966.
O apartamento do escrito, em Moscou, e no qual se passa parte da trama de O Mestre e Margarida virou local de culto. No final dos anos 2000 foi transformado no Museu Bulgákov.

COMENTÁRIO SOBRE A OBRA

Por Guilherme Freitas - O Globo

No início dos anos 1980, os moradores de um edifício da rua Sadôvaia, em Moscou, começaram a notar estranhas intervenções na decoração. De uma noite para a outra, os corredores ganharam grafites que, pouco a pouco, se espalharam pelas paredes. Entre as inscrições, destacavam-se os muitos desenhos de um enorme gato preto, em poses variadas: bebendo vodca de um tacinha, jogando xadrez, incendiando uma casa. O tal gato é um dos personagens de O Mestre e Margarida, e os grafites são obra de leitores do livro de Mikhail Bulgákov (1891-1940) que faziam peregrinação ao prédio onde o escritor viveu (e também um dos cenários do romance).
As manifestações dos leitores fizeram com que o antigo apartamento de Bulgákov fosse transformado num Museu dedicado ao escritor.

Livro só foi publicado duas décadas após a morte do autor

Dramaturgo de sucesso na Moscou dos anos 1920, Bulgákov começou a trabalhar no romance em 1928, mas, doze anos depois, morreu sem ver a obra publicada. Tanto tempo se deve, por um lado, à complexidade da trama de O Mestre e Margarida, que narra a chegada do diabo e sua comitiva à Moscou stalinista. Lá, os visitantes se envolvem com o mestre, um escritor perseguido pelo governo e pelos intelectuais por ter publicado um romance sobre os últimos dias da vida de Jesus. A caracterização da comitiva satânica e a riqueza das descrições da Jerusalém onde se passa a obra do Mestre indicam a profundidade da pesquisa feita pelo autor.
Mas a demora foi provocada também pelo temor da reação que a obra poderia causar em tempos de repressão. Censurado muitas vezes nos palcos por conta de suas sátiras políticas, o autor sabia do potencial perturbador de um romance sobre figuras religiosas numa sociedade onde o ateísmo era imposto por lei (um impasse satirizado já na primeira cena do livro, na qual o diabo tenta provar a dois literatos ateus que Deus existe). Bulgákov escrevia praticamente em segredo e, ao morrer, apenas sua mulher e um pequeno círculo de amigos sabiam da existência do livro. A obra só foi publicada, enfim, em 1966, encartada em fascículos numa revista literária, e logo encontrou lugar entre os grandes romances do século XX.
Há muitas formas de ler O Mestre e Margarida. Antes de tudo, é uma comédia arrebatadora que condensa todo o talento do Bulgákov dramaturgo: ler o livro é como assistir a uma produção delirante, com cenários detalhistas (o prédio da rua Sadôvaia, a sede as associação de literatos de Moscou, o subsolo onde vive o mestre), música incidental abundante (como os trechos de óperas e as várias versões de "Aleluia" que irrompem nos pontos mais caóticos da trama) e diálogos afiados.
O dramaturgo também se nota na construção cuidadosa dos personagens, muitos dos quais entraram para a galeria da cultura popular russa. O diabo apresenta-se como Woland, historiador e especialista em magia negra, um distinto senhor com um olho verde e outro negro, que jamais levanta a voz mas deixa uma impressão aterrorizante em todos que cruzam com ele ("Numa palavra, estrangeiro"). Woland é escoltado por Behemoth, o gato preto que anda sobre duas patas, adora vodca, e tem inclinações piromaníacas; Kerôviev, o ardiloso negociador do grupo; Azazello, um ruivo atarracado de ombros largos e feiura indescritível; e Hella, "uma jovem totalmente nua, ruiva e com ardentes olhos fosforescentes".
As peripécias do grupo em Moscou são o centro da primeira metade do livro. Em poucas horas, eles presenciam a decapitação de um distinto poeta amigo do regime, ocupam o apartamento dele e e agendam uma série de apresentações no Teatro de Variedades de Moscou (anunciadas como "Sessões de Magia Negra e Sua Revelação Total"). Nessas cenas, brilha a inteligência satírica de Bulgákov: ironicamente, o diabo e sua comitiva surgem como uma forma "moralizadora" em Moscou, expondo as contradições e injustiças do regime stalinista e da sociedade soviética. O ponto alto da primeira parte é a apresentação no Teatro das Variedades, que começa com outra decapitação e termina com uma chuva de dinheiro sobre a plateia e farta distribuição de roupas e joias para as mulheres. Tudo ilusão, como o diabo gosta - a "revelação total" prometida expõe não os segredos da magia negra, mas a hipocrisia e a ganância do público. 
A segunda metade de O Mestre e Margarida se concentra nos personagens-título, mencionados discretamente na primeira parte. O Mestre é um escritor de meia-idade, autor de um romance protagonizado por Pôncio Pilatos, o procurador romano que, nos Evangelhos, nada faz para impedir a crucificação de Jesus. Margarida, sua amante, o encoraja a publicar um trecho da obra, que desperta reações furiosas de intelectuais aliados do regime, por mostrar figuras religiosas como personagens históricos.
Abatido com a perseguição dos críticos, o Mestre queima o manuscrito do romance e acaba num manicômio, desiludido com a Literatura. Enquanto isso, Margarida tenta resgatá-lo, e para isso alia-se a Woland, numa sequencia de cenas que contém algumas das passagens mais memoráveis do livro (como aquele em que Margarida sobrevoa Moscou de vassoura, à noite, completamente nua, e o baile de gala no qual ela serve de acompanhamento para o diabo).

Romance dentro do romance faz reflexão sobre a bondade

O texto do romance do Mestre surge em vários pontos de O Mestre e Margarida, criando um contraponto curioso: enquanto a Moscou do século XX é descrita como um cenário mitológico por onde circulam bruxas e demônios, a Jerusalém dos tempos de Jesus é retratada com extremo rigor histórico (reforçado pela decisão do autor de usar a grafia original dos nomes - Yerushalaim, Yeshua Ha-Notzri). Essa estratégia permite que Bulgákov desloque suas críticas ao regime: além da comparação implícita entre Stálin e César (cujos nomes nunca são mencionados), é em Jerusalém que aparecem as torturas, condenações sumárias e complôs políticos que eram rotina entre os soviéticos. Já na Moscou "mitológica" onde se situa a maior parte da trama, as prisões de inocentes passam por desaparecimentos misteriosos, atos de bruxaria.
É também no romance do Mestre que Bulgákov introduz um dos temas centrais do livro, sugerido nas conversas entre Pilatos e Jesus sobre a natureza da bondade. Essa reflexão é elaborada ao longo de toda a obra, em especial num discurso de Woland no desfecho da trama, quando Bulgákov, num último ato de ironia, faz Jesus e o diabo expressarem, em momentos distintos, uma mesma visão: não há Bem ou Mal absoluto, e a covardia é a pior das fraquezas humanas.